imagens: Capicua / André Tentúgal / Universal Music / DR
Sendo um disco sobre os complexos tempos que vivemos e seus grandes desafios, é sobretudo um convite à contemplação, no sentido em que convoca o resgate, a partir da arte (em forma de música e poesia), do nosso compromisso com a humanidade. Afinal, o encantamento (que está tão presente na infância e que se erode com o tempo) é o principal remédio para o cinismo, para a falta de empatia, para a incapacidade de tecer novas utopias.
Este disco convida-nos a limpar as lentes que o tempo foi tornando foscas, para nos deixarmos impactar, para não cedermos ao adormecimento e ao vício da dopamina rápida, para aguçarmos o espírito crítico, para renovarmos os votos com as utopias e não sucumbirmos à angústia vigente e à ansiedade da informação incessante.
Celebrando a força insubmissa das palavras e da música, como forma de construção de novos mundos, Capicua mistura a palavra dita e cantada com o rap, mostrando-se ora combativa, ora vulnerável, mas sempre profundamente humana. Ora, esse exercício é também um ato de resistência, num mundo em que o exercício poético é tão desaconselhado, em que as máquinas ameaçam substituir-nos até no ato da criação e em que o ensaio de qualquer utopia é imediatamente esmagado pela tecnocracia vigente.
Com a participação de Gisela João, Sopa de Pedra e Toty Sa'med, instrumentais de vários beatmakers e produção de Luís Montenegro (o grande cúmplice de Capicua na construção deste álbum), perfilam-se doze canções e cinco poemas. No meio de temas mais emocionais, há muito espaço para questões sociais, políticas e ecológicas, misturando-se registos (líricos e musicais), num disco que foi construído a partir da experimentação e do cruzamento de técnicas de composição com instrumentos analógicos, com as ferramentas da música eletrónica, sempre a partir da palavra (declamada, cantarolada e debitada em rap).
O tema em destaque, "Ao Ocaso", tem a participação de Toty Sa'med, letra de Capicua, música de Luís Montenegro e Virtus e um Lyric Vídeo de André Tentugal, com os bailarinos Piny Orchidaceae e André Cabral.
É uma canção que evoca a irreparável perda que constitui a morte dos grandes poetas, como uma metáfora para o fim da poesia e como celebração da sua importância (até como necessidade humana). A poesia, tal como a fé, ajuda a dar sentido à existência diante da inevitabilidade da finitude, mas está (ela própria) ameaçada, num mundo em que o exercício poético parece ser anacrónico e mesmo desaconselhado e em que as máquinas ameaçam substituir-nos até no ato da criação.
Por tudo isso, nunca como hoje precisámos de poetas, como força de resistência contra autocratas, tecnocratas e outros prosaicos poderes. Como combustível para a rebeldia humana, tão difícil de manter com passar dos anos e o acomodar dos conformismos. Como bálsamo contra o cinismo e a falta de empatia e contra a incapacidade de entender a ironia (que parece ser um dos sintomas da robotização em curso).
Fazer do ocaso poema, antes que seja a última vez e, ainda por cima, dançando, é a proposta deste tema que termina com uma comovente citação do poeta palestiniano Marwan Markhoul.
"Um gelado antes do fim do mundo" já se encontra à venda e pode ser ouvido em todas as plataformas digitais.
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