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Opinião

O Barco já saiu

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O Barco já saiu

Foto: Rádio Voz da Planície

"Tento afastar-me das notícias e das televisões. Passo por períodos em que não sinto que tenha a resistência necessária para lidar com o mundo. Pode ter a ver com o facto de a minha vida não estar muito organizada de momento, mas também pode ser por sair de casa todos os dias e não fechar os olhos ao que vejo. E para desgraça, basta o que basta", afirma a crónica de Ana Ademar, atriz, que pode ler e ouvir aqui.

"Ainda assim, atravessando esta espécie de período de nojo, não consigo escapar às notícias que me agridem várias vezes por dia.

Só nos últimos dias a coisa tem sido de tal forma que qualquer um fica com a sensação de que durante o sono viajou para um universo paralelo onde, à primeira vista, está tudo igual, mas de perto se percebe a perversidade e a desumanização em curso.

Segue uma lista de acontecimentos que, estou certa, se este fosse um mundo saudável, fariam com que ninguém abandonasse as ruas e os megafones soassem enquanto não fossem resolvidos: o genocídio em Gaza levado a cabo pelo governo israelita prossegue a toda a força; na Ucrânia continua-se a morrer por uma “disputa de territórios” (não sei se é mesmo por causa disto, mas independentemente da razão, há gente a morrer e não há nada que justifique isso); os Estados Unidos e o mundo assistem a uma campanha eleitoral entre alguém que está claramente demente e outro alguém que não sendo político nem demente, não foi munido com as qualidades necessárias para ser qualificado como humano; em menos de 24 horas morreram 6 mulheres e crianças em Espanha, vítimas de pessoas de quem apenas esperavam amor e proteção - ninguém escolhe partilhar a vida com um animal capaz duma vilania destas…

Por cá: Claúdia Simões foi condenada, com pena suspensa, a 8 meses de prisão por ter mordido um agente da PSP quando este - não sei se antes ou depois lhe ter desfigurado a cara - a sufocava com o seu peso (não aprendemos nada com o caso George Floyd, não é?!); um PSP foi ilibado da acusação de agressões a uma mulher a quem partiu a cara, mas apanhou 3 meses de pensa suspensa por outras agressões cometidas dentro da esquadra onde trabalha; o governo português deixa a vida de milhares de pessoas suspensa, durante meses, à espera de um documento que lhes dite o futuro. O número de pessoas em condição de sem abrigo aumenta diariamente. Se não têm abrigo, não têm trabalho. Se não têm trabalho não têm abrigo ou comida. Ou roupa. Ou um sítio para tomar banho. O número de pessoas sem abrigo com consumos elevados de álcool ou drogas aumenta. Porque não têm abrigo, não têm trabalho, não têm comida, não têm roupa lavada, não têm um duche ou uma casa de banho. Perdem a esperança e então vale tudo.

Há já alguns anos fiz um espetáculo que incidia sobre as experiências dos ex-presos políticos em Portugal. Nessa altura li e ouvi muitos testemunhos (“No Limite da Dor “ – programa da Antena 1, de Ana Aranha, disponível em podcast no site da rádio, posteriormente editado em livro pela Parsifal, co-autoria de Ana Aranha e Carlos Ademar) e muitos desses ex-presos referiam que, para os fazer falar, além das agressões físicas, a PIDE-DGS investia muito na destruição da pessoa, na sua desumanização. Será difícil resistir e lutar quando já não nos sentimos gente, não é? A dignidade, parecendo que não, é coisa fundamental para a sobrevivência do ser humano. Uma vez destruída, resta apenas o corpo e esse, sabemos, é a nossa maior fragilidade.

Como se destrói a dignidade? Há várias estratégias e uma das que era usada pelos pides, era vedar o acesso dos presos à casa de banho e a qualquer possibilidade de fazerem a sua higiene pessoal. Já agora, e uma vez entrados neste sombrio tema que é a tortura nas prisões do antigo regime, de que tantos dizem ter saudades, pensemos nos efeitos imediatos da privação de sono – tortura usada muito frequentemente. Imagino que quem se vê a dormir na rua, não tenha um descanso reparador, não é?! A alimentação é também fundamental para nos sentirmos bem e para que o nosso cérebro processe informação de forma eficaz.

Deixemos de lado a ideia tantas vezes papagueada, de que os pides eram tolinhos. Não eram, sabiam exatamente o que estavam a fazer. Percebiam que, sem dignidade e com a sanidade mental afetada, ninguém processa informação ou reage de forma articulada e coerente. A vontade própria desaparece. E não pretendo, de forma nenhuma, fazer qualquer tipo de comparação entre as vítimas da PIDE e as pessoas que estão em situação de sem abrigo. No entanto, sem esforço, consigo perceber que numa e noutra situação, o que está em causa é a dignidade, o indivíduo e a capacidade decidir e pensar melhor.

É possível, mas pouco provável que esteja a exagerar, terão de me perdoar, é que não tenho dormido bem.

E no meio disto tudo, perdemos o Fausto Bordalo Dias, que era de quem eu queria falar quando comecei este texto. Aparentemente nada do que falei aqui está relacionado com a perda irreparável de um dos nossos grandes: poeta, compositor e, acima de tudo e mais importante, Homem. Certo é que cada um dos assuntos aqui abordados nos leva cada vez mais para longe do tal “sonho lindo” que o Fausto cantava para que se fixasse na memória de todos para jamais o esquecermos."

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