Enquanto nas instalações do Museu de Etnografia de Serpa estão a ser resolvidos os problemas de um espaço que esteve aberto ao público 36 anos, o Centro Musibéria tem várias salas reservadas para as cerca de 1.000 peças que representam mais de uma dezena de ofícios diferentes.
Salas, num edifício contíguo, de uma fábrica de moagem que a Câmara Municipal de Serpa requalificou. E que são também os metros quadros que acolhem estes legados, sítios de memórias de uma ruralidade que aproxima e acolhe.
“O Alentejo é o trabalho.”
Assim diz a moda de uma forma de cantar que é património imaterial da humanidade, desde 2014. E quando entramos na fábrica de moagem, entre os objetos que nos transportam para a altura em que laborava, encontramos tantos outros que nos invadem a memória com lembranças, melodias, do trabalho desempenhado com mestria por avós e pais de muitas gerações.
Cada peça é tratada como se fosse uma joia. Foram entregues à guarda da autarquia serpense por aqueles que as preservaram, em suas casas, até à altura em que as doaram para ganharem eternidade.
Crianças, professores e mais velhos foram envolvidos, desde sempre, na construção do Museu de Etnografia de Serpa e, no presente, a equipa multidisciplinar que está “a refletir e a criar a possibilidade” de se conseguir ver as coleções de “outra forma” sabe bem as preciosidades que manuseia.
“Travar a degradação e preservar tudo o que diz respeito aos objetos representativos do trabalho” tem sido um desafio para a equipa de conservação e restauro.
O que importa – e para tomar estas decisões a socióloga Teresa Marreiros não escondeu que tem precisado de contactar outros colegas da área – é “perceber a fronteira até onde vai o tratamento do objeto”. Ela garante que “há peças onde é preciso deixar terra”, por exemplo, para que possa ser claro o uso da mesma.
“O Alentejo canta, logo resiste.”
Assim se referiu ao Alentejo o cineasta Sérgio Tréfaut no documentário que retrata um povo que reconhece a importância de conservar e valorizar o seu legado cultural, com a “paciência, sensibilidade e amor” que o caracteriza.
E é por tudo isto, e pelo que fica por dizer, que os outros profissionais – que integram a equipa multidisciplinar responsável por devolver à comunidade as suas lembranças – não têm as suas tarefas facilitadas.
Cláudia Freire é a antropóloga que “abraçou” este desafio e que está a criar, em conjunto com as outras disciplinas envolvidas – como são, e só para identificar algumas, o caso da história, da arquitetura e do audiovisual – “outras possibilidades” para estes objetos com vida.
A ideia, revela a especialista, é que “os legados venham a ser expostos refletindo temáticas atuais a partir de objetos do passado”.
Foi visivelmente comovida que a antropóloga disse que “todas as memórias dos ofícios representados permitem relações de afeto, transportam para vivências e ambientes de sociabilidade”. É, acrescentou, como se os mesmos fossem “extensões de um mundo, com pouco mais de 40 anos, que leva as pessoas a sentirem a pertença que se deseja conseguir”.
“Fui colher uma romã. Estava madura no ramo.”
Este é o verso de outra moda. E ilustra a arte do saber fazer visível nos objetos que dentro do tempo estipulado vão regressar à sua “casa”, em Serpa, e em breve.
Barbeiros, sapateiros, roupeiros, lavradores, abegãos, aguadeiros e tantas outras profissões são possíveis “de conhecer” e significam o “resultado do processo colaborativo que caracterizou sempre este museu”. Palavras da arquiteta Maria Manuel Oliveira, da Câmara de Serpa, que tem a seu cargo a equipa.
O Museu de Etnografia é “uma parte de um todo.”
O plano estratégico municipal “Serpa Museu Aberto”, que a autarquia desenvolve há muito, estabelece o território concelhio como amplo espaço museológico que engloba os mais variados aspetos do património material e imaterial, bem como a rica biodiversidade e as especificidades geográficas do concelho. Ou seja, a desconstrução da ideia de museu apenas em espaços fechados.
“Quem não é de Serpa quando visitar o museu pode conhecer e perceber o território, vivenciando-o”, frisa Maria Manuel Oliveira. A arquiteta, que tem em mãos, assim como todos os envolvidos neste projeto, a missão de mostrar “o que é nosso como ponto de partida para outros motivos de interesse do concelho. Ou se preferirem como chegada de outras visitas a lugares do território”.
“Rosa albardeira.”
“Este museu não é uma peça isolada. Somos, também este património endógeno. Venha visitá-lo”, convida Maria Manuel Oliveira.
E sugere o vislumbre, igualmente, da “rosa albardeira”, também ela única neste concelho e partilhada na sua beleza em modas do cante alentejano. É na serra de Ficalho que está esta rosa especial, que só pode ser vista em mais um concelho do País. E esta é apenas uma das muitas particularidades do concelho de Serpa. O rio, as oliveiras centenárias, as festas religiosas e pagãs, os moinhos, o Museu do Cante são outras ofertas, e outros caminhos, que no seu conjunto fomentam a curiosidade de conhecer e experienciar.
E no campo fez-se uma cidade, branca, onde toda a geografia pode convergir, também, para um “um espaço povoado de ofícios e das suas gentes”. Um lugar para os naturais e visitantes que “convida a ousar deixar-se encantar”.
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